terça-feira, 18 de outubro de 2016

"Ser médico não é um trabalho, é uma espécie de maldição"

Por favor, não se assuste nem mude de página. O texto a seguir é longo e talvez fale muito do que você não quer ouvir, mas é algo sobre o que precisamos falar. Respire fundo e prossiga.
Até hoje não sei responder à clássica pergunta "Por que você escolheu fazer Medicina?". Talvez seja sempre assim, uma incógnita. Ou talvez não tenha sido eu quem fez a escolha, e sim a Medicina que fez por mim. Se é destino, benção ou até mesmo maldição como a citação do filme francês Hippocrates, isso vai depender de cada um. Entretanto, uma coisa eu tenho certeza: a Medicina não é nada do que imaginam ou querem que você pense.
Para os que estão de fora, como era meu caso há 6 anos, há, simplificando, dois tipos de Medicina. A primeira vem da visão glamourosa dos filmes e séries, em que médicos são bem sucedidos, até mesmo geniais, resolvem grandes problemas, são admirados pelo seu trabalho e por isso mesmo respeitados. Nessa visão eles têm problemas e passam por frustrações, mas que são logo esquecidos. Quem nunca pensou em um médico ideal, capaz de grandes diagnósticos como House mas a empatia e a presença agradável de Patch Adams? O segundo tipo de médico é um tanto quanto oposto e provém muito da visão passada pela mídia - o médico ausente, displicente e até mesmo imperito, com importantes falhas no conhecimento. Esse segundo médico comete erros e isso é visto como errado, independente do erro ser absurdo ou não, pois a impressão passada é a de que o médico não pode errar, em hipótese alguma.
Pois bem. Entrei na faculdade com uma sede de conhecimento imensa. Eu queria ser excepcional naquilo que escolhi para a minha vida. Junto, havia uma ânsia por ser útil, por fazer a diferença. Aos poucos, numa espécie de tortura lenta, a estrutura curricular foi tirando isso de mim, dando a entender que eu fora uma tola sonhadora. Para lutar contra o desânimo do choque inicial, agarrei-me à esperança daquele período lendário chamado internato, repleto de promessas de conhecimento e auxílio ao próximo.
Sim, o conhecimento adquirido durante o internato foi imenso. Uma avalanche de informações que deixou ainda mais clara a quantidade de falhas nos primeiros quatro anos de graduação. Só que o problema aí não foi lidar apenas com a quantidade de conteúdo a ser assimilado em tão pouco tempo, nem mesmo a dificuldade em saber quando e como aplicá-lo da maneira mais adequada. Não, houve algo ainda mais complexo, algo óbvio de se imaginar mas para o qual ninguém lhe prepara — a sobrecarga emocional. Você começa a ter de lidar com as mais diversas e difíceis situações. Lidar com pessoas, já tão delicado naturalmente, torna-se especialmente complicado quando estamos falando de pessoas doentes, em clara situação de fragilidade.
Todavia, não é isso o que mais me deixou inquieta ao longo dos últimos anos. É a burocracia que me perturba, junto da hierarquia pouco funcional. São esses os aspectos que mais me impediram de ajudar as pessoas de modo adequado. Apenas nesses dois anos de prática médica intensiva tive dezenas, se não centenas, de problemas com essas questões. Eu poderia passar horas discorrendo sobre as dificuldades enfrentadas, exemplificando, mas para não me alongar citarei apenas algumas.
A primeira morte ocorrida em minhas mãos foi de um paciente com doença hepática avançada, já na fila de transplante. Naquela noite no pronto socorro, os residentes estavam ocupados reavaliando os pacientes deitados em macas para observação enquanto eu ficava com os pacientes da porta, novos ou à espera de reavaliação. Após liberar um paciente fui chamada por uma enfermeira da triagem pedindo que eu atendesse em seguida um paciente que estava na sala de espera. Nas palavras dela, ele era "um hepatopata triado como amarelo" [alguém que pode esperar até uma hora pelo atendimento], que estava "um pouco rebaixado, mas sem critérios para a sala de emergência". Chamei o paciente ao consultório enquanto olhava na ficha o tempo de espera desde a entrada: 55 minutos. Ao entrar no consultório, conversando com a acompanhante notei grave rebaixamento do nível de consciência e ausência de movimentos respiratórios, com lábios arroxeados. A família considerou que ele estava dormindo apenas por ter passado as duas últimas noites acordado, imaginaram que estivesse cansado. Suas mãos estavam frias e não havia pulso. Levei-o imediatamente à sala de emergência (aquela mesmo que a triagem disse ser desnecessária para o caso) e seguimos pelo protocolo de reanimação cardiopulmonar por 35 minutos sem sucesso. Um paciente que chegou confuso, numa cadeira de rodas porém ainda desperto e contactuante agora estava morto. Houve erro? Onde? Na triagem que não notou a gravidade? Na equipe médica insuficiente para avaliar a quantidade de pacientes em um intervalo menor de tempo? Há um culpado específico nessa história ou foi apenas uma fatalidade, algo inevitável?
Em outro caso, fui orientada a inalar uma paciente com insuficiência respiratória moderada a grave que era secundária a um bócio mergulhante compressivo. Para os leigos, imagine alguém sendo estrangulado e me diga: a inalação resolveria para essa pessoa respirar melhor? Meus apelos não foram ouvidos pela R3 de Cirurgia Geral, eu era apenas uma aluna nos primeiros meses do sexto ano, sem CRM. Foi preciso procurar (não sem grande dificuldade para encontrar) um assistente e expor o caso para que a conduta adequada fosse tomada. A paciente acabou sendo encaminhada ao centro cirúrgico para realização de intubação orotraqueal guiada por broncoscopia e não tive mais notícias.
Falando em inalação, durante um plantão precisei procurar pelo técnico de enfermagem responsável pela sala de medicação para fazer uma inalação com certa urgência em outra paciente. Já fazia meia hora que aquele plantão fora iniciado e, apesar de serem necessários dois técnicos naquele local, a sala permanecia vazia. Encontrei o técnico comendo na copa e descobri que a outra não havia chegado, sendo passado o plantão para um funcionário que deixou as medicações na espera e decidiu se alimentar logo no início do plantão (entendam aqui que não critico a pausa para se alimentar, fundamental em um plantão de 12 horas, mas sim a pausa na primeira hora de plantão e sem a presença de um funcionário que o cobrisse durante o período). A resposta ao meu pedido de montar a inalação por se tratar de uma urgência foi "Vou te mostrar onde fica tudo pra você poder montar quando precisar", seguida do retorno à copa. Enquanto eu preparava a inalação, cerca de dez fichas me esperavam para serem atendidas, muitas delas com o tempo de espera máximo adequado ultrapassado.
Isso tudo para não falar dos incontáveis casos que chegavam no hospital e, quando tentávamos fazer algo, ouvíamos que o paciente não poderia ser internado ou encaminhado a um ambulatório nosso (do hospital em que eu estava) pois ele "não é da região". A conduta acabava sendo um encaminhamento a ser levado na UBS próxima da casa do paciente, seguido de uma nova espera, muitas vezes eterna. O paciente retornava à rede, a um sistema falho e doente onde pessoas correm de hospital em hospital, UBS em UBS, normalmente sem encontrar solução alguma.
No fim de tantos percalços, as alterações nos alunos são visíveis. Somos submetidos a horários esdrúxulos, com rotinas alimentares ridículas. Quando percebia, já estava havia horas sem beber água ou ir ao banheiro. Ao retornar do almoço, escutava reclamações dos pacientes pela demora em serem atendidos, pois na mente deles mesmo 15 minutos de espera a mais para que eu engolisse alguma coisa era inadmissível. Eu não tinha mais um período do dia para ficar sonolenta, mas um cansaço contínuo basal. Meu corpo passou por muitas mudanças em pouco tempo e esse foi o balanço de que me lembro nos últimos dois anos;
- uma crise de cólica renal;
- três infecções de urina;
- crises de asma frequentes, algumas muito mais intensas do que as da adolescência, as quais não ocorriam havia cerca de 8 anos;
- insônia intensa, com necessidade de medicação para conseguir dormir mais do que duas horas;
- transtorno de ansiedade generalizada;
- depressão moderada;
- fobia social;
- crises de pânico;
- quatro burnouts.
Apesar disso tudo, tive a sorte de não perder a empatia, embora sofra as consequências de me deixar envolver tanto com meus pacientes. Talvez, com o tempo, eu consiga aprender a me frustrar menos com as coisas que não consigo mudar, aceitar que não sou infalável e sim uma simples humana.
Se sou plenamente apaixonada pela Medicina? Não. Mas gosto do que faço, sinto prazer ao ver que tanto esforço valeu a pena e que posso sim fazer a diferença, mesmo que para poucos. Com a maturidade sei que virá a resiliência e esses sentimentos ruins irão perder tamanha importância, ou pelo menos é nisso que prefiro acreditar.
Não entendam por tudo isso que ser médico é uma profissão odiosa e apenas com sofrimentos. Entendam apenas que é preciso saber tudo que está envolvido e que a vida por esse caminho não é fácil. Gostaria que tivessem me preparado um pouco antes para isso e é por esse mesmo motivo que decidi escrever um pouco da minha experiência. Se forem entrar nessa, que seja por amor e jamais sejam tolos de se negarem a pedir ajuda se acharem necessário. Pedir ajuda não é sinal de fraqueza, é sinal de humanidade, algo que vi muitos perderem por aqui com o tempo.