quarta-feira, 15 de junho de 2016

.

O stress, junto com a ansiedade, tem sido considerado o mal dessa geração. Muito disso vem em consequência da vida que levamos, da rotina a que nos submetemos. Pensando nisso e nas conversas que venho tendo a algum tempo com colegas da faculdade, decidi falar um pouco de como tem sido a vida nesses últimos anos dentro do universo da Medicina.
A Medicina no geral costuma ser um sonho para os que seguem esse caminho. Sempre temos os que fazem o curso por status, pressão dos pais ou outro motivo qualquer. Vamos deixar esses casos de lado. Nós que vamos por esse caminho por amor, pelo desejo de fazer a diferença e ajudar o próximo, não sabemos muito como isso vai ser. Temos uma visão romantizada mesmo quando afirmamos para nós mesmos que "sabemos das dificuldades que virão".
Não, nós não sabemos. Ter a consciência de que o curso terá uma grande carga horária, desafios emocionais e noites mal dormidas (ou até mesmo sem dormir) não nos prepara para tudo o que vem em seguida. É uma vida dura, sofrida, com um peso de responsabilidade cada vez maior. Isso não quer dizer que não temos bons momentos, acontecimentos felizes e que nos ajudam a seguir em frente. Estou apenas dizendo que não estamos no capítulo final da novela depois que entramos na faculdade - ainda vai ter muito antagonista passando a perna na gente e surpresas do destino para que cheguemos na cena do protagonista bem sucedido, festejando ao tilintar de taças de champanhe.
Vivemos o ciclo básico, onde questionamos com frequência como usar aquilo para tratar um doente. Passamos para o ciclo clínico acreditando que a Medicina vai realmente começar a entrar em nossas vidas, mas muitas vezes nos sentimos numa extensão do primeiro ciclo.
Enfim, vamos ao último, aqueles dois anos em que brincamos realmente de médicos, brincadeira essa que em diversos momentos mostra-se perigosa - não estamos mais na época de checarem nosso exame físico, aquilo que falamos é tido como verdade e aquela vida está na sua mão, mesmo que não seja o seu nome no carimbo responsável. São horas e horas no hospital, podemos passar dias sem ver a luz do sol e, ao nos deitarmos nos períodos de folga, o som dos aparelhos permanece apitando em nossos ouvidos. Começamos a ver gente morrer, algumas literalmente em nossas mãos. Aprendemos que dois minutos são uma eternidade quando se está fazendo uma massagem cardíaca - seus braços doem, seus músculos queimam, falta o ar e o suor escorre mas você continua, porque você (junto com toda a equipe, claro) é a última chance daquele ser humano, daquele coração talvez voltar a bater. Muitas vezes ele não volta, apesar de todo o esforço, e isso é frustrante mesmo quando já se sabia que as chances eram ínfimas.
Nessa época o hospital vira a sua casa e você passa os dias sendo cobrado por todos direta ou indiretamente - assistentes, preceptores, residentes, colegas, pacientes, acompanhantes e si mesmo (o pior de todos). Na questão pacientes e acompanhantes, temos muitos educados e compreensivos, mas o problema são os incisivos que tanto nos afetam. Somos laçados no corredor na busca de respostas que não temos, cobrados pelos impasses advindos do sistema falho em que vivemos. Somos xingados, ameaçados, agredidos (desde cuspes até tapas e mesmo tesouras ou armas). Mesmo assim, mantemos o atendimento, porque atender pacientes foi o que escolhemos fazer, é o que amamos.
No caso dos sexto anistas como eu, são os últimos meses que nos separam da "licença para matar", o famoso CRM, então lutamos com todas as forças. Junto dos plantões e dos estágios em si, ainda temos o monstro da prova de residência no fim do ano. Ela é um peso que carregamos, uns com mais preocupação do que outros, sem nunca deixar de nos assombrar. Ao menos na minha faculdade, todos esperam que passemos de primeira, sem cursinho nem nada (afinal, temos um ótimo internato). Professores ficam indignados com o crescente número de formandos que sequer prestam a prova ao se formar, que preferem tirar "um ano sabático". Nem falemos então na ida para o exército, segurar uma vaga de residência para o ano seguinte enquanto liberamos esse ano para alguém com uma nota menor? Que absurdo!
O problema é que até hoje não vi nenhuma dessas pessoas que censuram tais atitudes questionar porque isso ocorre e tentar mudar algo entre os desencadeantes. Ninguém se importa com os alunos que trancam matrícula ou saem para intercâmbio principalmente para "sair daquele lugar por algum tempo". Ninguém perguntou porque a ideia de emendar mais 3 a 5 anos de residência no mesmo local nos apavora. Ninguém percebe a quantidade de pessoas que mudam sua escolha de residência por estarem "de saco cheio" (e aqui me incluo dentre os que cogitam tal possibilidade). Não vamos fazer algo que não gostamos, mas vamos escolher algo que talvez não fosse nossa primeira opção porque não aguentamos mais. Estamos sobrecarregados e não há antidepressivo, ansiolítico ou benzodiazepínico que tire isso de nós. Invejo aqueles que se mantêm firmes por uma carreira mesmo sabendo quão sofrida será sua vida nos próximos anos, mas também tenho medo por eles. Já tive amigos e conhecidos o suficiente que se suicidaram para temer por esses que se colocarão ainda mais no limite sob a justificativa de que "são só mais alguns anos", "depois melhora". Sabemos bem que não são "só" alguns - se os meses são tão eternos mesmo após sair de um burnout, como tolerar anos? A percepção do tempo é algo pessoal, mutável, perigoso. 
Entendam, amamos o que fazemos. A grande maioria de nós não desistirá apesar de todos os obstáculos. Esse é apenas um desabafo de alguém cansado de tamanha hipocrisia quando se trata da "preocupação com o estudante", irritada com aqueles que insistem que estão lutando pelo nosso aprendizado quando apenas o que se vê são ações para crescimento político e social. Percebam, nós todos somos humanos, temos limites que não são respeitados, porém fomos condicionados a aceitar tudo isso como "normal", necessário, como se não tivéssemos outra opção. Acreditem, Jogos Vorazes é uma ficção que apenas ampliou e dramatizou na fantasia, de maneira indireta, a vida exigida ao máximo que se leva na sociedade atual (e estou falando agora muito além do universo da Medicina em que estou inserida). Por favor, lutem para serem mais do que marionetes nas ideias transmitidas pelos outros. 

Nenhum comentário: