quinta-feira, 21 de outubro de 2010

O particular global

Quando criança, Feliciano tivera de fazer um trabalho para a aula de artes com base no quadro Retirantes, de Cândido Portinari. O então garoto não via muito sentido em fazer a releitura, entretanto era obrigado a criar algo.
Retirou o fundo da imagem impressa e colocou a família de retirantes em isopor, prendendo-a dentro de uma caixa de sapatos pintada por dentro de cinza chumbo. Colocou palitos de churrasco pintados de preto por toda a abertura e recortou uma pequena janela gradeada, tão alta que nem mesmo seria vista dependendo do ângulo em que se olhava.
Na época, Feliciano se sentiu incomodado com a cena montada. Hoje entende o porquê de tal sensação - aquela montagem representava todo um povo. Na verdade, não se tratava apenas do retirante oprimido pela estrutura socioeconômica nordestina e pelo clima severo; era bem mais do que isso. Acima do retirante, aquilo era Feliciano, interiorano paulista sem vida folgada, porém razoavelmente sossegada; era todo e qualquer Homem, brasileiro ou estrangeiro.
Sem saber, o menino de 13 anos materializara a realidade escondida de qualquer ser humano. Em todo o mundo, pessoas se submetem a prisões psicológicas - de alguma forma, estão amarradas a algo ou alguém. Há opressões escancaradas enquanto se observam inúmeras ditaduras veladas.
Atrás de grades, materiais ou não, homens e mulheres lutam pela sobrevivência. Mesmo entre aqueles que moram em casas confortáveis e apresentam condições de vida relativamente boas, como Severino Feliciano, existe uma ou outra amarra, a submissão diante de certas situações.
Aos 73 anos, Severino percebe que todos possuem uma vida "gangorra": uns, apesar de mais embaixo, lutando e sofrendo, têm momentos de alegria; outros, em cima, vivem mais tranquilos mas nem por isso estão livres de certo sofrimento. São assim, meio Felicianos, meio Severinos.

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