sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Sobre plantões, a vida e tudo o mais

Essa semana, em um de meus plantões noturnos, atendi uma paciente com crise do pânico. Não sei porque atraio tantos casos psiquiátricos nos meus plantões, mas esse em especial não me incomodou tanto, muito pelo contrário, acabei refletindo um pouco sobre a vida.
Vamos chamar essa paciente de Carla, apenas para que ela não seja só "a paciente com síndrome do pânico".
Carla é uma jovem gaúcha na faixa dos 30 anos já com diagnóstico prévio de síndrome do pânico, porém ela parou de tomar a medicação há 3 meses por não gostar de tomar remédios continuamente e por estar bem controlada no último ano, sem novas crises.
Pois bem. Acontece que Carla sempre viveu em Santa Maria, cidade do interior do Rio Grande do Sul (a da Boate Kiss? Sim, essa mesmo). Esse mês, devido a um treinamento na central nacional da empresa em que trabalha, Carla precisou vir para São Paulo. Para voltar ao hotel, tomou o metrô nas linhas vermelha e amarela em pleno horário de pico. Qualquer um que já precisou fazer isso sabe quão desesperadora pode ser a experiência mesmo para os paulistanos mais acostumados à loucura que é a vida nessa cidade, imaginem uma moça do interior sulista que não consegue ir a qualquer lugar sem conhecer as opções de saída locais. A consequência todos já devem imaginar - Carla entrou em crise de pânico, momento em que o corpo dispara reações que fazem a pessoa ter a clara sensação de morte iminente. Desesperador, não?
Durante a consulta, conversei para saber o histórico de Carla para chegar na sua principal queixa, a impressão de que estava tendo um infarto. Um pouco mais tranquila, prescrevi o medicamento adequado para alívio dos sintomas, orientei-a a retomar seu tratamento sob orientação médica o quanto antes e a liberei para voltar ao hotel, bem o suficiente para conseguir descansar e estar pronta para o dia seguinte, quando continuaria o treinamento (dessa vez indo e voltando de táxi - vamos torcer para que não ocorra nenhum alagamento no trajeto).
Depois de tanta enrolação, vamos à reflexão sobre a vida. Carla me questionou como conseguimos viver assim, com uma rotina tão agitada e insana que ela não considera digno nem de ser chamado de vida. Em uma semana na capital paulista, Carla notou as dificuldades de horário, em que necessitamos acordar horas mais cedo do horário de entrada do trabalho para conseguir chegar sem atrasos, já que o trânsito é absurdo e o transporte público superlotado. Na hora do almoço, comemos correndo porque nosso tempo é muito limitado, ocorrendo inclusive casos em que se discute durante  a refeição sobre questões do trabalho (em pleno horário de relaxamento!). Para voltar para casa é uma nova luta, gastando mais algumas horas e esgotando a pouca energia que nos restava. Carla achou um absurdo termos tão pouco tempo de lazer noturno, tempo esse que acabamos por gastar dormindo porque o dia seguinte trará mais um pouco de estafa para nossas vidas estúpidas.
Isso mesmo, estúpidas. Pois crescemos com enfoque em estudar para arrumar um bom emprego, emprego que nos trará dinheiro para nos mantermos e, quem sabe, guardar para o período de aposentadoria, época em que não nos restará muita energia para ter grandes aventuras. Trabalhamos para ganhar o dinheiro que nos comprará o prazer de que nos privamos por trabalhar tanto, mas nunca conseguimos comprar prazer suficiente para suprir nossa insatisfação.
Carla foi embora dormir e eu continuei trabalhando. Saí do trabalho e fui para a aula para aprimorar meu trabalho. Tomei um banho, jantei e fui novamente para o trabalho, daí então para a prova que visa verificar meu aprendizado e minha capacidade para trabalhar com tantas responsabilidades, prova essa feita depois de uma noite com só 2 horas de sono. Voltei tomar um banho e comi uma besteira, já que em breve vou novamente para o trabalho, trabalho ainda não remunerado até minha formação.
Fiquei com isso na cabeça. A gente se acostuma, a gente se submete a tantas coisas e por tanto tempo que, quando vai ver, nem sabe bem ao certo como foi parar nesse ciclo sem fim. Mas a gente continua. A gente se submete mais e mais. E vai estudando pra trabalhar pra ganhar pra se sustentar pra ir trabalhar. Talvez em algum outro lugar a vida não seja tão extrema assim, tão densa e corrida. Talvez em Santa Maria as pessoas tenham até um tempo para a sesta, enquanto eu fico aqui apenas na esperança de poder dormir na manhã do dia seguinte, nem que seja por algumas poucas horas.

2 comentários:

Dany B. disse...

Me lembrou do conto d'O Alienista, do Machado. Quem sabe se os q chamamos de enfermos não são os verdadeiros (e únicos!) sãos?

O HC e lunaticos de jaleco.

Dany B. disse...

Me lembrou do conto d'O Alienista, do Machado. Quem sabe se os q chamamos de enfermos não são os verdadeiros (e únicos!) sãos?

O HC e lunaticos de jaleco.